sábado, 27 de abril de 2024

Lee Tamahori - “A Alma dos Guerreiros” / “Once Were Warriors”


Lee Tamahori
“A Alma dos Guerreiros” / “Once Were Warriors”
(Nova Zelândia – 1994) – (102 min. / Cor)
Rena Owen, Temuera Morrison, Mamaengaroa Kerr-Bell, Julian Arahanga.

Quando o cinema fez cem anos, o British Film Institute encomendou a cineastas de diversos países um documentário sobre a história do cinema no seu país, tendo ficado célebre o realizado por Martin Scorsese intitulado “A Personal Journey With Martin Scorsese Trough American Movies” / “Uma Viagem Pelo Cinema Americano”, já editado em dvd no nosso país. No que diz respeito à Nova Zelândia, país que nos interessa aqui, a escolha não recaiu sobre a mais famosa cineasta dos antípodas Jane Campion, mas sim no actor Sam Neil, conhecido de todos e ficámos desta forma através das suas imagens a saber como nasceu e evoluiu o cinema da Oceânia. Falamos muito no australiano e esquecemo-nos do outro parente deste continente.


Isto tudo para falarmos de Lee Tamahori e do seu filme “A Alma dos Guerreiros” / “Once Were Warriors”, um dos mais surpreendentes arranques numa carreira de cineasta, surpreendendo tudo e todos, aliás bem demonstrado no Festival de Montreal (Canadá) e como não podia deixar de ser o braço longo de Hollywood foi de imediato buscar o cineasta.


Regressemos ao filme antes de falarmos da carreira deste cineasta, filho de pai Mahori e mãe inglesa. Os Mahori são bem conhecidos de todos nós quando vimos os torneios de râguebi, sendo célebre a cerimónia encenada pelos elementos da equipa antes dos jogos, eles são os descendentes de um povo guerreiro. Ora é disso mesmo que trata a película de Lee Tamahori, a impossibilidade de actos de bravura desse povo guerreiro, confinado a um estatuto de segunda categoria numa sociedade dominada pelos naturais da Grã-Bretanha.


A pouco e pouco o povo Mahori foi perdendo as referências, deixando-se encurralar nos subúrbios das grandes cidades, no caso concreto do filme será Auckland, encontrando na bebida um conforto, enquanto os atritos provocados nas ruas dos subúrbios lhes oferecem a oportunidade de gritar bem alto a sua força de guerreiros, outrora senhores da terra. Por isso mesmo eles cultivam a sua masculinidade através da opressão feminina, veja-se a forma como Jake (Temuera Morrison) trata a mulher Beth (Rena Owen), como se ela estivesse ali só para satisfazer os seus desejos sexuais, usando a violação como prova de poder e a violência motivada pelo álcool como a fuga sem saída do seu quotidiano sem luz, onde o desemprego é uma dura realidade.


Será neste microcosmos de violência e dor que irá residir o filme de Lee Tamahori, apresentando-nos a luta de duas mulheres, mãe e filha, vítimas de um mundo onde a lei não tem qualquer poder. A revolta de Beth será um dos momentos chaves da película e se os filhos de Jake começam já a seguir as pisadas do pai, a sua filha, depois de toda a dor sofrida, irá ser a luz que irá indicar o caminho da salvação para a mãe.


Lee Tamahori iniciou a sua actividade como fotógrafo, depois passou a director de fotografia e assistente de realização. Durante 10 anos viveu no mundo da publicidade, bem visível no seu cinema, onde foi por diversas vezes premiado. Na televisão aprendeu a arte da realização, e depois estreou-se no cinema com este “Once Were Warriors” / “A Alma dos Guerreiros”, que o projectou internacionalmente, acabando por ser requisitado pelos Estúdios Americanos estreando-se na América no policial “Brigada de Elite” / “Mulholland Falls”, com um elenco encabeçado por Nick Nolte, e onde abundavam valores seguros como Malkovich, Palminteri e Madsen. Depois foi a vez de quase um regresso às origens através de “The Edge” com argumento do célebre David Mamet, onde Anthony Hopkins e Alec Baldwin brilham perdidos na floresta, em duplo duelo: o da sobrevivência com o urso; o do prazer através do corpo de Elle Macpherson.


Depois o cineasta regressou ao policial, através de “A Conspiração da Aranha” / “Along Came a Spider”, revelando-se então como valor seguro dos Estúdios. Mas os maus resultados de “Die Another Day”, onde Halle Berry não brilhou ao lado de Mr. Bond (Pierce Brosnan) conduziram-no às ruas secundárias de Hollywood, “xxx: State of the Union” foi um fracasso e o desemprego bateu-lhe à porta. Mas como Lee Tamahori é um realizador talentoso conseguiu regressar ao trabalho e em 2007 ofereceu-nos “Next” / “Next – Sem Alternativa” com Nicolas Cage e Julianne Moore nos protagonistas e em 2011 realiza na Europa “A Dupla Pele do Diabo” / “The Devil’s Double” e de seguida regressa às origens ou seja à Nova-Zelândia e o seu enorme talento renasce das cinzas com “O Patriarca” / “Mahana”.


Quanto “A Alma dos Guerreiros”, obra de uma visibilidade dolorosa, é um daqueles filmes merecedores de serem revistos, obrigando-nos a reconhecer que, no mundo tecnológico do século xxi, a mulher ainda tem muitas lutas a travar com o universo masculino, seja no terceiro mundo ou nas sociedades industrializadas. O simples gesto de tirar o véu da cabeça, como sucede no magnífico “10” da Abbas Kiarostami representa uma afirmação de luta e liberdade. “A Alma dos Guerreiros” no filme de Lee Tamahori também vive no interior do corpo feminino e quando o seu grito se faz ouvir, não há vocabulário que o possa extinguir.

Rui Luís Lima

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