segunda-feira, 15 de abril de 2024

Wim Wenders - “As Asas do Desejo” / “Der Himmel Über Berlin”


Wim Wenders
“As Asas do Desejo” / “Der Himmel Über Berlin”
(Alemanha/França – 1987) – (127 min. - P/B - Cor)
Bruno Ganz, Solveig Dommartin, Otto Sander, Peter Falk, Curt Bois.

Quando Wim Wenders começou a pensar na história para um filme passado em Berlin, que fosse uma espécie de homenagem à cidade, conversou longamente com o escritor e cineasta Peter Handke, que iria escrever a história e ambos perceberam que seria muito importante dar espaço à improvisação, porque a essência da própria cidade convidava a isso. Por outro lado, Wim Wenders inspirou-se nas “Elegias de Duíno” de Rilke e nos quadros de Klee, para melhor trabalhar a sua concepção da película. E, a pouco e pouco, foi nascendo da colaboração destes dois homens a história dos anjos que habitavam Berlin. Mas nada melhor do que dar a palavra ao cineasta.


“Se eu tivesse que antepor um prefácio, ou uma espécie de “pré-história” à minha história, ela soaria mais ou menos assim:

Quando Deus, infinitamente desiludido fez preparativos para se afastar para sempre da terra e abandonar a humanidade ao seu destino, aconteceu que alguns dos seus anjos o contrariaram e intervieram em favor da causa dos homens: devia dar-se-lhes ainda mais uma oportunidade.

Deus, irado com o seu protesto, desterrou-os para o então mais terrível lugar do mundo: Berlin.

E depois, afastou-se.

Tudo isto teve lugar no tempo que hoje se designa por “últimos anos da guerra”


E assim, estes anjos caídos na “segunda queda dos anjos”, estão presos, desde então, nesta cidade, para sempre, sem esperança de salvação ou mesmo regresso ao Céu. Estão condenados a ser testemunhas, eternamente, nada mais do que espectadores, sem poder sequer influir o mínimo sobre os homens ou intervir no curso da história. Nem sequer um grão de areia pode ser movido por eles…”


E será assim que iremos encontrar dois desses anjos, Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), a vaguear pela cidade de Berlin, acompanhando o movimento da cidade ao mesmo tempo que vão escutando o pensamento dos habitantes da cidade com quem se cruzam, sem nunca serem vistos. Apenas as crianças, devido à sua inocência, possuem o poder de sentir a sua presença, mas ao crescer irão perder esse mesmo poder, ao mergulharem na luta quotidiana da sobrevivência.


Acompanhamos as suas deambulações pela cidade, numa espantosa fotografia a preto e branco, fruto do saber desse grande director de fotografia chamado Henri Alekan.

Por vezes Damiel e Cassiel trocam opiniões sobre o que viram ao longo do dia e continuam a estudar a essência da alma humana, mesmo quando Damiel encontra um homem em vias de cometer suicídio e lhe coloca a mão no ombro, numa tentativa de lhe frustrar os seus intentos, mas infelizmente ele não tem o poder de impedir o suicídio, e esse homem mergulha do alto do prédio rumo ao asfalto, num adeus trágico à sua condição de ser humano.


Vamos assim percorrendo as ruas e o interior de edifícios públicos, como a biblioteca e o hospital, escutando as memórias dos que por lá se encontram, como se elas fizessem o retrato de um país, reflexo do estado do mundo.


Até chegar esse dia em que Damiel se cruza com um circo que se encontra na cidade e se apaixona pela trapezista Marion (Solveig Dommartin), passando a frequentar o circo todas as noites. Mas não é só ela que lhe desperta a atenção, também uma equipa de filmagens que se encontra a realizar um filme lhe chama a atenção e, ao cruzar-se com o actor principal da película, o célebre Columbo (Peter Falk), irá descobrir que ele o vê, porque se trata de um antigo anjo que decidiu renegar a sua condição celestial e mergulhou na terra, passando a ser humano. Um humano portador desses pequenos prazeres que são beber um café, fumar um cigarro, ler um jornal ou simplesmente desenhar algo, sentindo a textura dos materiais. E será esse desejo de ser mortal que irá levar Damiel a mergulhar de um edifício rumo ao asfalto, em busca desse desejo maravilhoso de partilhar sentimentos com as pessoas que irá encontrar, em busca desse amor que se encontra presente no corpo dessa trapezista que tem medo de cair do trapézio e perder o direito à sua condição humana.


Damiel irá assim descobrir, lentamente, todos os pequenos prazeres de que lhe falou o ex-anjo, não escondendo a sua admiração, como se fosse uma simples criança a criar o seu pequeno universo, até nascer o momento em que se irá cruzar na vida da bela Marion, por quem está apaixonado.


Wim Wenders conta-nos esta história como se fosse um conto de crianças escrito para adultos, que buscam a redenção dos seus pecados, em busca de uma oportunidade para recomeçar uma nova vida, sendo o rosto de Bruno Ganz sinónimo dessa ingenuidade que, em criança, todos possuímos à medida que vamos descobrindo o mundo que nos rodeia.


Quando Damiel (Bruno Ganz) mergulha, em busca da sua condição humana, o filme passa a cores e assim, pela primeira vez, ele tem contacto com a paisagem, essa mesma paisagem que lhe irá oferecer a oportunidade de ele a transformar, nessa busca perfeita do amor.


“As Asas do Desejo” / “Der Himmel Über Berlin” não é só uma película profundamente alemã, basta escutar as memórias/pensamentos das pessoas com quem os anjos se cruzam, mas também uma obra que nos transmite questões que nos levam a interrogar o mundo em que vivemos, porque o destino das nossas vidas vive na palma da nossa mão, respirando em cada segundo o sentido desta nossa pequena viagem pelo universo.

Rui Luís Lima

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