quarta-feira, 17 de abril de 2024

Ermanno Olmi - “A Lenda do Santo Bebedor” / “La Leggenda Del Santo Bevitore”


Ermanno Olmi
“A Lenda do Santo Bebedor” / “La Leggenda Del Santo Bevitore”
(Itália/França – 1988) – (127 min. / Cor)
Ruther Hauer, Anthony Quayle, Sandrine Dumas, Dominique Pinon.

Nunca me esquecerei da tarde em que vi pela primeira vez, no cinema Nimas, "A Árvore dos Tamancos" / “L’albero degli zoccoli”, e tal como eu, também muitos lhe fixaram o nome e saíram mudos e pensativos da sala; apetecia andar para se conseguir absorver a totalidade da beleza das imagens, mas também meditar naquela história simples, de uma criança que anda descalça até que o pai lhe oferece uns tamancos, criados a partir da "árvore do patrão", que o despede e expulsa devido ao seu acto "rebelde". Mas "L'Albero degli zoccoli", realizado em 1978, é uma das obras-primas do cinema e no entanto tornou-se in(visível) para todos nós!


Muitas vezes se diz que um prémio num Festival de Cinema é êxito garantido para a sua visibilidade, outros encaram as encomendas de entidades estatais ou privadas, também como sinónimo de visibilidade garantida, mas nem sempre assim sucede.


A obra de Abbas Kiarostami, "Ten Minutes Older" (transformada em video-instalação) abordando a passagem do tempo, uma encomenda mais tarde recusada pela produtora inglesa e que permaneceu no "limbo" da exibição, até ser apresentada pela primeira vez na retrospectiva de Turim e mais tarde na Cinemateca Portuguesa.


Quando Ermanno Olmi decidiu adaptar a novela "A Lenda do Santo Bebedor" de Joseph Roth (está editada pela Assírio & Alvim), muitos se interrogaram acerca do actor que iria desempenhar o papel do sem-abrigo Andreas Kartak e quando surgiu o nome de Rutger Hauer, o andróide de "Blade Runner" ou o "Killer" de "Terror na Auto-Estrada", para já não falar do "amante" da "Mulher Falcão", muitos se questionaram se não estaríamos perante um erro de "casting" ou uma imposição de produtores, mas seguindo os passos de um italiano chamado Luchino Visconti, que escolheu um antigo trapezista de circo, mais tarde actor de cinema, chamado Burt Lancaster, para o seu "O Leopardo", assim Ermanno Olmi apostou num actor que simplesmente se transfigurou e criou essa personagem sublime, chamada Andreas Kartak!


"A Lenda do Santo Bebedor" / "La Leggenda del santo bevitore", datado de 1988, acabaria por vencer o Leão de Ouro do Festival de Veneza, mas a sua visibilidade foi tão reduzida, que foram muito poucos aqueles que o viram na Sala 2 dos Cinemas Alfa, já encerrados. Mais tarde editado em vídeo, (um dos vídeos mais amados aqui na casa). Hoje decidimos deixar aqui algumas imagens, na primeira pessoa, vestindo as roupas de Andreas Kartak, depois de acordarmos debaixo de uma das muitas pontes que atravessam o Sena em Paris, seguirmos o seu percurso. Pretendemos desta forma simples recordar esta obra-prima do Cinema e da Literatura, para que ela não caia no esquecimento.


Todos nós, por vezes, descobrimos que estamos terrivelmente sós e apenas as margens do rio e as suas pontes nos servem de abrigo. Ali permanecemos infinitamente, enquanto o vento e o frio sacodem os cobertores de jornais, retirados dos caixotes perdidos nas ruas da indiferença. Depois, bem, depois de mais uma noite de chuva, a solidão é-nos roubada por 200 francos, emprestados por um desconhecido e com aquele dinheiro reencontramos o tempo perdido.


Na verdade, não queria aceitar aquela dádiva, porque nunca a poderia pagar, mas a fé que me foi transmitida era de uma intensa beleza, à qual eu, Andreas Kartak, pobre emigrante desempregado e vagabundo das margens do Sena, não consegui resistir. Santa Teresinha era a responsável pelo milagre de, finalmente, poder matar a sede, naquele vinho cor da vida, no dia em que voltei a ter uma identidade, o dia do meu aniversário. Comprei um jornal para ler e deparei com a quinta-feira da minha existência. Bebi o café acompanhado do absinto secreto dos poetas e aquele homem, sentado ao meu lado, de sorriso amável, ofereceu-me trabalho por dois dias, recebi outros 200 francos.


Mais tarde, dormi numa pensão e tomei banho. Tinha uma missão a cumprir: entregar a dádiva de Deus, feito homem, ao padre de Sainte Marie de Batignolles, para ele oferecer a Santa Teresinha, como tinha prometido ao meu amigo desconhecido.


No dia seguinte tentei cumprir a promessa, mas a interminável passagem das horas e um amor do passado não o permitiram. Depois a memória da vida levou-me por caminhos (des)conhecidos: reencontrei um velho companheiro de infância, um amigo da mina e, por fim, uma bailarina, certamente corista, que me amou ternamente enquanto o dinheiro por milagre se ia multiplicando.


A vida tomou conta da minha alma durante o tempo suspenso e impediu-me, sucessivamente, de cumprir a palavra dada: entregar os 200 francos a Santa Teresinha. Mas quando as forças já me faltavam e a vida se despedia de mim, ela veio buscar-me ao bar, pela mão daquela bela criança, iluminando o meu caminho até ao altar, para realizar a promessa e encontrar finalmente a paz celestial.


Aqui, onde hoje me encontro, no azul do céu, tenho por companhia Bresson, Dreyer e Tarkovsky e descubro na religiosidade dos seus filmes as imagens de que fui intérprete na obra-prima de Ermanno Olmi, "A Lenda do Santo Bebedor", um dos filmes da minha vida.

Rui Luís Lima

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