sábado, 23 de março de 2024

François Truffaut - “A Noiva Estava de Luto” / “La Mariée Était en Noir”


François Truffaut
“A Noiva Estava de Luto” / “La Mariée Était en Noir”
(França – 1967) – (107 min. / Cor)
Jeanne Moreau, Claude Rich, Jean-Claude Brialy, Michel Bouquet,
Michel Lonsdale, Charles Denner, Alexandra Stewart.

Como todos sabemos o nome de François Truffaut é sinónimo de cinema. Ele viveu do cinema e para o cinema, primeiro como crítico e depois como cineasta. Mas se o cinema foi a sua grande paixão, os livros foram sempre, também deste muito cedo, um dos seus alimentos da alma. Os célebres livros de “poche” revelaram-lhe um universo literário que o iria acompanhar ao longo da vida, no interior dos diversos géneros. Encontrou nos célebres policiais de capa amarela uma paixão que decidiu transportar por diversas vezes para o interior do cinema, quase sempre com um sucesso reduzido por parte do público.


“Disparem Sobre o Pianista” / “Tirez sur le Pianiste”, o seu segundo filme com Charles Aznavour no protagonista, baseado num romance de David Goodis foi um fiasco comercial, apesar de excelente, depois adaptou dois romances do célebre William Irish (autor de “Janela Indiscreta”): “A Noiva Estava de Luto”/ “La Mariée était en Noir” e “A Sereia do Mississipi” / “La Sirene du Mississippi” terminando curiosamente a sua obra com esse maravilhoso policial que se chama “Finalmente Domingo” / Vivement Dimanche”.


“A Noiva Estava de Luto”, a obra que nos interessa hoje, possui um elemento muito importante no seu interior chamado banda sonora. E dizemos isso porque o compositor escolhido por François Truffaut foi o célebre Bernard Herrmann, autor de inúmeras bandas sonoras dos filmes de Alfred Hitchcock. Mal se inicia a película, ao som da marcha nupcial, descobrimos a partitura de Bernard Herrmann como um dos mais importantes protagonistas da película, porque as suas notas transmitem de forma soberba o “suspense” pretendido pelo cineasta e, quase sem darmos por isso, entramos numa obra profundamente Hitchcockiana. Basta recordar que iremos sabendo “a conta gotas” os motivos que levam Julie Kohler (a bela Jeanne Moreau, que recentemente nos deixou) a matar aqueles homens.


Estamos assim perante um mistério que se vai revelando à medida que os assassinatos são cometidos. O conquistador Bliss (Claude Rich) é empurrado da varanda, enquanto o solitário Robert Coral (Michel Bouquet) é envenenado, já o industrial Clement Morane (Michel Lonsdale, aqui sem a pêra que o celebrizou) é sufocado numa arrecadação e a terminar (pensamos nós) o pintor Fergus (Charles Denner) é morto por uma seta. Resta assim Delvaux (Daniel Boulanger), que escapou porque a polícia chegou primeiro para o prender. Mas como a vingança se serve fria, numa bandeja de prata, Julie Kohler (Jeanne Moreau) após o quarto assassinato decide deixar-se prender no enterro de Fergus, para ajustar as contas com o sucateiro na prisão e aqui François Truffaut dá-nos um final magnifico, oferecendo-nos a sua morte, sem nunca a vermos, apenas a escutamos: o grito que abala a estrutura da prisão.


Quem não viu o filme deve estar a perguntar o que poderá unir estes homens tão diferentes e distantes entre si? Apenas dois assuntos: as mulheres e a caça. E será precisamente a caça o motivo da tragédia de Julie Kohler que desde tenra idade viveu para se casar com o grande amor da sua vida. A morte de David (Serge Rousseau), como iremos descobrir, é acidental. Mas o medo apoderou-se dos cinco homens que decidem fugir do apartamento onde se encontram e nunca mais se verem, para esconderem essa mancha do seu passado.


Julie Kohler, que encontramos no início do filme a olhar um álbum de fotografias, vestida de negro, fecha o álbum repentinamente e decide suicidar-se, atirando-se da janela abaixo sendo impedida pela mãe. Empreende então uma longa busca, que irá durar alguns anos, até descobrir os assassinos do amor da sua vida e só irá descansar quando o último deixar de respirar.


François Truffaut irá dizer, mais tarde, que a razão do insucesso de “A Noite Estava de Luto” se prende com o facto de ter decidido rodar a película a cores, procurando de certa forma homenagear Alfred Hitchcock. E aqui até lhe damos razão, porque se imaginarmos este filme a preto e branco, iríamos entrar no interior desse universo do “film noir”, como mais tarde o cineasta faria com o maravilhoso “Vivement Dimanche” / “Finalmente Domingo”.


A outra razão apontada por Truffaut pelo insucesso da película figura na escolha da protagonista. Jeanne Moreau não possui a frieza e desencanto pretendida pelo cineasta, apresentando-se um pouco “como uma estátua” (as palavras são dele, não minhas, porque a acho perfeita). Mas também nunca nos poderemos esquecer que, na altura da filmagem de “A Noiva Estava de Luto”, Françoise Dorléac, irmã de Catherine Deneuve e musa de François Truffaut em “Angústia” / “La Peau Douce” iria encontrar a morte num trágico acidente de automóvel. E todos sabemos como o cineasta amava as suas actrizes, no verdadeiro sentido da palavra, aliás foi essa a principal razão que levou ao fim da amizade entre ele e Jean-Luc Godard, quando este lhe escreveu a criticar a sua personagem em “A Noite Americana” / “La Nuit Américaine” acusando-a de falsidade, já que François Truffaut era conhecido por se apaixonar pelas actrizes que dirigia nos filmes, mantendo quase sempre casos com elas ao longo da rodagem(*).


Jeanne Moreau, que fora a estrela dessa obra-prima chamada “Jules e Jim” e em tempos companheira do cineasta, possui aqui uma excelente interpretação, porque ela transporta consigo uma angústia assassina, que só irá desaparecer quando terminar a sua missão vingadora. Repare-se que ela não sucumbe ao fascinante pintor, por momentos até temos essa ideia quando nós e ela nos apercebemos do nascimento de uma certa atracção, mas ela vive imune às palavras de sedução do artista. E não será demais referir que foi aqui que François Truffaut encontrou em Charles Denner o intérprete perfeito para ser o protagonista de “O Homem que Gostava de Mulheres” / “L’Homme Qui Aimait Les Femmes”, esse homem que seguia as pernas de uma mulher perfeitamente seduzido e fascinado, essas mesmas pernas que irão conduzir à sua morte. E por falar em pernas, reparem na forma como Franços Truffaut filma as pernas de Jeanne Moreau, como se as tivesse a acariciar, situação que será recorrente em outras películas do cineasta, bastando recordar a forma como Fanny Ardant mostra as suas pernas a Jean-Louis Trintignant quando este se encontra refugiado na cave em “Finalmente Domingo”.


“A Noiva Estava de Luto” surge assim como um magnifico policial, embora François Truffaut tivesse uma opinião contrária. Descobrir esta película e compará-la com os outros policiais deste grande cineasta é a nossa proposta para hoje e não se esqueçam de escutar com a máxima atenção a banda sonora composta por Bernard Herrmann, porque nela sentimos a linguagem Hitchcockiana do Mestre que François Truffaut tanto admirou ao longo da vida.


(*) A leitura do livro “François Truffaut” da autoria de Antoine de Baecque e Serge Toubiana é fundamental pata o conhecimento da vida e obra de um dos fundadores da Nouvelle Vague. Um livro que se lê como um romance ao longo das suas 900 páginas, na edição da Folio/Gallimard.

Rui Luís Lima

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